20110830

Brasília: um filme, um cantor, uma jaqueta.

(no avião)

Foi no avião que Bernardo viu Lígia pela primeira vez. Lígia já tinha visto Bernardo na sala de embarque, mas como havia esquecido sua jaqueta em um banco do lado de fora, teve que sair correndo para buscar. Por isso, Bernardo não a viu antes.
Sem conseguir recuperar a jaqueta, foi embarcando pensando no frio que iria sentir durante o vôo e na escala em São Paulo. Vestindo jeans e camiseta vermelha, Lígia se arrependeu, durante os cinco passos que deu no corredor do avião, de ter cortado o cabelo há dois dias. Pelo menos com o cabelo comprido ela podia cobrir as costas que sempre ficavam arrepiadas no frio.
Enquanto Lígia pensava no frio, na jaqueta, no cabelo e procurava sua poltrona, Bernardo já estava sentado. Bem acomodado, ouvia música em seu mp3 e batucava os dedos no ritmo de “Lucy in the Sky of Diamonds”, dos Beatles. Olhando para o chão e curtindo a música ele viu um tênis branco, o mesmo modelo que usava, se aproximar. Contou cinco passos. O par de tênis parou junto aos seus.

- Oi, dá licença?
(A girl with kaleidoscope eyes)

Bernardo ouviu exatamente esse verso olhando para os movimentos dos lábios de Lígia que lhe pedia licença para passar. Antes do refrão, ele olhou os olhos dela. Azuis, verdes, cinzas. Não soube definir a cor exata.
Ainda pensando no frio, Lígia, que queria logo sentar para se abrigar na poltrona fez gestos apontando para os ouvidos para que Bernardo tirasse os fones para ouvi-la.
Mesmo sem querer interromper a música, Bernardo optou por tirar os fones para ouvir Lígia. E ele os tirou devagar formando no mesmo ritmo um sorriso meio sedutor, meio admirado.
Nesse momento, Lígia se irritava com a lentidão que a fazia sentir mais frio. Mas ela também deixou formar um sorriso meio irônico, meio encantado pelo jeito de Bernardo.
Na verdade, várias garotas que estavam no avião admiraram Bernardo. Moreno, um rosto bonito de traços perfeitos, altura certa para qualquer homem. Vestia roupas bonitas e um tênis branco. Como o de Lígia.
Sorrindo e falando ao mesmo tempo, Lígia pediu licença novamente. Bernardo se desculpou e levantou para abrir caminho até a poltrona ao lado.
Enfim, sentou e aqueceu as costas na poltrona. Nesse momento ela pensou no frio, na jaqueta, no cabelo e no rapaz ao lado – Bernardo, que apontou para os pés e disse:

- Gostei do tênis.
- Percebi. – Falou Lígia balançando a cabeça.
- Frio?
-Muito. Eu esqueci minha jaqueta.
- Vai pra São Paulo?
- Brasília.

Durante a conversa Bernardo não desviou o olhar do rosto de Lígia que respondia rápido, com medo de explicar muito e acabar falando bobagens já que sua atenção era desviada consecutivamente para o olhar, a boca e a camisa de Bernardo.

- Usa a minha. – Bernardo estendeu sua jaqueta preta de naylon para Lígia.
- Não, Imagina – Lígia pensou no frio, na sua jaqueta, na jaqueta de Bernardo e no seu cabelo.
- Pode usar. Está limpinha.
Lígia com um olhar hesitante pegou a jaqueta, sorriu e deixou escapar:
- Ai, que situação.
- Culpa sua.
- Do que?
- Da situação. – Respondeu Bernardo mostrando os dentes e molhando os lábios.

Lígia vestiu a jaqueta. Um pouco grande, mas serviu para aquecê-la. Depois de vestir, ela pensou no frio, na jaqueta de Bernardo, no seu cabelo e na boca de Bernardo.

CATEGORIA: Imaginação

20110829

Antes do meio-dia PARTE I

Como acabar com aquilo que nem começou?

Havia muitas dúvidas na cabeça dele. Mas queria se arriscar. Queria sentir o peso de errar e sofrer. A ponto de ser tão egoísta por guardar o prazer para sí. Um prazer efêmero, ilusório, inconsistente. Até sem motivo pois, já tinha com quem dividir qualquer tipo mais genuíno de prazer ou qualquer outro sentimento bom.
Ele então, se mostrou egoísta. Mais "ego" do "ísta" e jogou a rede.
De cara ganhou a pescaria. Desenvolvia lentamente até o peixe vir à superfície, até não poder respirar. Isso o dava prazer.
Quando chegou perto de ter o que queria... desistiu. Com um aperto no ego.
De resto, pensou melhor mesmo não querendo pensar. Deixou sua caça ir e até se despediu sendo mais "ísta" do que "ego". Admitiu o erro. Nem tentou mais. Ficou apenas imaginando como seria se fosse ao invés de não ser.

CATEGORIA: Mentiras Sinceras. 

20110828

Alice aos dezoito

A princesa que vivia no castelo cruzou os portões e chegou ao pântano.
Lá, não há sapo algum para se transformar em príncipe.
Ela viu abutres, pisou na lama, sentiu frio e medo do escuro.
Às vezes, se anima com a luz do sol.
Sente saudade dos jardins, do chá, do perfume da roupa limpa e até dos bailes.
Mas a vida é outra.
Fora do castelo não há proteção. Não há realeza.
Uma princesa no pântano, tentando achar o caminho de volta.

Pensou que a liberdade seria mais feliz que a obediência. 


CATEGORIA: Rotina.

Nem pudor nem compromisso

Vicente não era do tipo que se apegava a sentimentos perigosos. Gostava, curtia, e depois de conseguir o que queria, desencanava. Não tinha um porte físico perfeito nem era o mais inteligente dos mortais. Apesar disso, era um cara interessante. Sabia contar boas histórias e escolhia as roupas certas para despertar curiosidade entre as mulheres. 

Nunca namorou sério. Compromissos estavam longe de seus planos.
Também não tinha vergonha. Se queria, falava e corria atrás. "Não sou de dificultar as coisas", me disse uma vez. 

Vicente não tinha pudor em revelar as coisas que sentia. Até se apaixonar. Um dos sentimentos mais perigosos que nunca havia experimentado. Com a paixão, veio o ciúme, o medo. Desistiu disso. 

Não conseguiu esquecê-la mas ainda vive da mesma maneira.

CATEGORIA: Rotina