20111226

Hábito

Eu abro a janela.
Você sai pela porta e desce a escada.
Eu arrumo a cortina e logo te enxergo.
Você me vê mas não me olha. Entra no carro e vai embora.
Vai ser sempre assim.
Desconforto, silêncio, desamor.
Não há ódio.
Só não há vontade.

CATEGORIA: Rotina

20111204

Que piranha!


- Ela abaixou a calcinha e disse: vem. Aí, já viu.
- Mas que safada! Ele te disse isso mesmo?
- Isso. Sem-vergonhice pura.
- Menina. Eu sabia que ela não prestava mas isso já é demais.

Elza contava à Carmen o que havia acontecido há um mês, quando Júnior começou a sair com Nice. As vizinhas compartilhavam as informações, levantavam suspeitas e aumentavam versões. Há muito tempo esperavam uma bomba dessas. Só para poderem ter o que falar de Nice. A moradora mais nova da vila que sempre chegava de táxi e saía de salto para o trabalho.

Num domingo, quando elas caminhavam até a igreja para ir ao culto, Elza viu Júnior sair do bar sorrindo. Mil e uma caraminholas surgiram em sua mente. Nem prestou atenção nas palavras do pastor. Chegou em casa e foi logo perguntar ao primo o motivo de tanta alegria às sete da manhã de um domingo.

- Felicidade lá escolhe hora? Me deixa dormir.

Encucou. Foi até a casa de Carmem tentar saber o que tinha para o almoço e também para imaginar verdades. Júnior não era de virar a noite assim. Trabalhava, estudava e só tinha dezenove.

Bem mais tarde, Elza soube o que acontecera. E foi pela própria boca de seu primo.

- Sabe aquele dia que eu saí do bar de manhã, num domingo? E tu foste me acordar depois pra saber o que tinha acontecido?
- O que tem?
- A Nice chegou lá de noite. Comprou cigarro, tomou umas cervejas e ficava cantando algumas músicas que estavam tocando. Ela estava sozinha. De vez em quando descruzava as pernas e dava pra ver a calcinha. Todo o mundo ficava olhando. Depois de um tempo, ela levantou e foi falar comigo. Perguntou a minha idade e riu que só quando eu respondi. Ela saiu de perto e parou de beber. Ficou na porta do bar. Deu duas, deu três da manhã. Um pessoal já tinha ido embora. E eu já estava cansado. Cheguei na porta pra sair e ela me parou. Me puxou até o banheiro.
- Na frente de todo o mundo?
- Tinha umas três pessoas que nem eram daqui.
- E aí?
- A gente ficou. No banheiro. Ela abaixou a calcinha e disse: vem.

(...)

Pausa para o espanto de Elza. Ela disse que não queria mais saber da história e nem por decreto imaginaria a cena. Era pecado, e dos graves. Por isso mesmo teve raiva. Não de Júnior por ter se entregado ao "erro". Mas de Nice. Bonita, cabelo cheiro de frutas, boca grande e um quadril que todos os homens olhavam.

Elza teve raiva daquela mulher que fazia mal ou bem, depende do grau de prazer ou arrependimento. Ela teve raiva de Nice por Nice poder fazer o que bem queria, onde e como quisesse. Elza não. Vai ver ninguém nunca quis fazer tal safadeza com Elza.

Correu e foi contar à Carmem.

(...)

- E ela abaixou a calcinha e disse: vem. Aí, já viu.
- Mas que safada! Ele te disse isso mesmo?
- Isso. Sem-vergonhice pura.

CATEGORIA: Imaginação

20111124

Lua

Papai me disse hoje:

- Nada é impossível. Você quer ir à lua? Você pode ir.
- Eu quero ir à lua.
- É só estudar. Vai demorar, mas vais conseguir.


CATEGORIA: Imaginação

20111117

VERSÕES

Ele cozinhou como se fosse a última vez. Cortou a carne em cubos, separou os temperos, escolheu as batatas, lavou o arroz e apanhou as melhores panelas da casa. Fez tudo com muito gosto. Concentrado. Medindo cada dose. Aquecendo em fogo baixo e deixando o cheiro exalar pela casa inteira.
Preparou o suco e foi arrumar a mesa. Apagou o fogo. Entrou no banheiro e se banhou. Depois de dez minutos na água fria, foi jantar. Pôs-se à mesa e olhou para cada comida. Sorriu e se serviu. Sozinho. Sem música, sem vozes, sem telefones tocando.
A janta era toda dele.

::::::::

- Mãe, já são mais de oito horas, estou com fome!

Disse o menino esticando a blusa e com os olhos vermelhos de sono.
Mas Rosa não tinha apetite ainda. Queria esperar o marido chegar. E não importava como chegaria. Bêbado, sóbrio, mudo ou sorridente.
Ela fizera o prato preferido dele: arroz carreteiro e filé mal passado. Deu trabalho!
Deixou os meninos na casa da irmã e passou a manhã no mercado. Escolheu todos os ingredientes. Cozinhou lembrando dos doze anos juntos.
Na comida, sorrisos e lágrimas. Mais lágrimas. De felicidade, de raiva, de medo, de esperança, de rancor. Ela preparou tudo e o esperou. Não deixou ninguém tocar na comida. A fome das crianças não a importava.
Naquela noite, ela só queria que ele chegasse.
Era uma quinta-feira. Fazia calor. E o calendário da cozinha datava o dia 23 de agosto de 2001.

::::::::

Enxotou as amigas do apartamento. Arrumou a sala, passou o vestido novo e foi para a cozinha. Não sabia o que poderia preparar. Macarrão? Risoto? Panquecas? Delivery?
Olhou o molho de tomate preparado, conferiu as horas e escolheu o macarrão.
Fez tudo rápido. Deixou a tampa da panela cair, derramou molho na toalha de mesa, deixou a cebola queimar no óleo quente e entre os palavrões, sorria.
Aprontou tudo, checou o vinho e foi se arrumar. Vestido, batom, perfume.
O interfone tocou. Ela mandou subir.
O jantar já estava servido. Mesa para dois.

::::::::

- Passa o arroz.
- Quer refrigerante?
- Essa é a cadeira do teu avô, senta na outra.

Dois galetos, uma panela de arroz, feijão requentado, saladas, bolinhos de bacalhau, ovos cozidos, farofa, suco e refrigerante. A mesa estava farta. Tio Augusto veio de São Paulo. Avô, avó, tios, tias, crianças e cachorro.
A toalha já estava suja, o bebê virou o copo descartável e banhou a mãe.
A prima adolescente decretou que a louça não era com ela e o garanhão não desgrudava do celular.
Hoje a janta vai ser divertida!
Pobre da tia solteira, que só vai olhar e fingir sorrisos sinceros.

CATEGORIA: Rotina

20111106

No meio do ano

(4 de junho de 2009)

Meu bem,

Não precisas de uma estação para dizer o que somos.
Em todas firmo o sentimento plantado há anos.
Não andamos em círculos.
Juntos, escalamos montes e colinas tentando chegar ao topo.

E a felicidade só vem após as pedras.
No sapato ou no meio do caminho.
No verão que chega ou na primavera que se esconde.

Não precisas de um equinócio para perceber as próprias mudanças.
Ver as folhas caindo para crer que um novo tempo começa nem sempre é o certo.
Perceba isso todos os dias. Em todas as chances.
Cada estação é diferente.

Um outono nunca é igual ao anterior.
E as dúvidas sanam com o tempo.
Com o vento, com a chuva e o sol.

O meio do ano chegou.
O pico pode estar longe.
Mas caminhamos bem.

Juntos.
Sempre.

CATEGORIA: ROTINA

20111101

Redescobrir

- Tereza, para onde você vai assim?
- Vou quebrar as regras.
- E precisa ser desse jeito? Com essas botas?
- Sim.
- E não vai dar explicações?
- Não.
- No duro?
- Pra que tantas perguntas?
- Tereza, te conheço como a palma de minha mão. Por que isso agora?
- Se não for agora, será amanhã, ou depois.
- E isso é bom?
- Depende para quem.
- Pra você?
- Certeza.
- Pra mim?
- Incerteza.
- Bem, se você vai quebrar as regras, posso ir junto?
- Não.
- Pouco importo, então.
- Ótimo! Melhor pra você, acredite.
- Tereza. Essa firmeza toda machuca, sabia?
- Sei disso.
- E não sentes nada?
- Não. Não dessa vez.
- Não mereço mais tua dor?
- Não mereces minhas respostas.
- Que barra!
- Preciso ir.
- Com essas botas?
- Sim.
- Estão horríveis!
- Nada do que você falar vai deter o que eu quero.
- Quer quebrar as regras?
- Foi minha primeira frase da noite.
- E não quer que eu te acompanhe?
- Não é não.
- Você vai voltar?
- É claro.
- Por que?
- Porque meu lugar é aqui.
- É Tetê, você ainda é um mistério.
- Isso é bom. Acredite.
- Não sei.
- Boa noite.
- Não demore.
- Não prometo.

CATEGORIA: Imaginação

20111012

Mais uma

Era gorda. Era feia.
Não ligavam para as suas vontades.
Não perguntavam por suas paixões.

Juliana só queria um sapato preto. Poderia até ser usado, mas tinha de ser preto. E de salto.Talvez crescer alguns centímetros nas festas de fim de ano apaziguaria a evidente beleza descartada de seu corpo. Talvez o preto realçasse seus pés. E insistia: preto, preto e de salto. Foi nas lojas mais baratas da cidade, pediu para as primas ricas e conseguiu um, usado e feio. Mas gostou.

Era tímida para a seriedade, mas desbocada para a distração. Juliana não teve pai. Não fez cursos nem lia livros, e roupa alguma lhe caía bem. Pouco importava. Nunca saía de casa para caçar homens. "Eu, me meter com esses homens daqui, credo!"

Passava as tardes sentada numa cadeira em frente de casa. Olhava toda a vizinhança passar. Ela ria da vida dos outros, olhava as coisas dos outros. Ninguém olhava por ela. Apenas riam de sua imagem. Era feia. Era gorda.

E até hoje não descobri o que fazer para Juliana ser feliz.

CATEGORIA: Verdade Ilusória

20111008

Amadurecer

Querer. Experimentar. Gostar. Errar. Sofrer. Aprender.Crescer.
É o ciclo natural da vida, mon cher!
Pra você, pra mim e para toda a torcida do Fluminense.

CATEGORIA: Rotina

20111005

A verdade

Finais felizes são para maricas! Tenho dito tais palavras desde que me entendo por homem. E não por menos. Só de ver minha mãe eu já entendia o romantismo como algo idiota. Coisa de mulher que pensa que o homem ama. Mas não. Homem não ama. A gente tem mesmo desejo, vontade, tesão, libido. Apertar os peitos de uma boa pequena, tirar o batom vermelho do beiço e sentir o gosto, satisfazer-se. Porque romance é mal do século. É motivo pra depois querer chorar. É saco de pancadas.
E enquanto ela chorava pelos cantos, o bar estava cheio daqueles machos se embebedando da cerveja mais vagabunda do bairro, escarrando, coçando e proferindo palavras indecentes a qualquer moça que por lá passava. Só queriam sexo. Como hoje, é apenas o que queremos.
Não se engane, moça. Nem se ele disser que está apaixonado. Nem se ele casar e chorar ao vê-la parir o primogênito. Na cama, ele dorme pensando em outra. Sorte será se ele te enganar com perfeição, o que geralmente não acontece. Porque, além de não amar, homens são tolos.
Moça, mais uma vez lhe advirto, seu amado homem é homem. E, assim como eu, não ama. Por isso, apenas dê a ele o que deseja.

Roberto da Cruz, 57 anos.

CAREGORIA: Mentiras Sinceras

20111004

A moça do café

Ela tinha olhos verdes. Reparou muito bem reparado. Foi somente pedir um café preto, pequeno, para espantar a preguiça do dia. Ainda usava óculos escuros e uma bolsa tiracolo marrom. Pediu o café e esperou. Ao receber, atentou para a moça que o serviu. Olhos verdes, rosto pálido. Ele pegou o café e permaneceu olhando a moça. Ela serviu e sequer levantou o olhar. Reprimida. Tímida. Desajeitada.

Ele quis ficar mas a tolerância do ponto não permitia. Olhou mais uma vez. Não tinha nome bordado no bolso do uniforme. Ninguém a chamava pelo nome. Não sabia como nunca havia reparado nela.

Foi embora e naquela noite, antes de dormir, pensou na moça do café.


CATEGORIA: Rotina

20110927

Alice, cadê a Isabel?

E um dia papai disse: ela fugiu!

Parecia um dia normal. Daqueles de acordar querendo ficar mais tempo na cama, com os pés cobertos no lençol. De escovar os dentes com os olhos quase fechados e na hora de vestir o uniforme perceber que mamãe não tinha passado na noite anterior.

Antes de levantar até pensei se ainda tinha presunto para preparar meu misto quente. Mas foi só papai acender a luz do quarto para nos despertar e nos tirar do mundo maravilhoso dos sonhos (onde não havia colégio nem ônibus lotado e nem mochilas pesadas) que o dia se transformou em um dia incomum. E ainda eram seis horas.

Isabel não estava na cama. O tênis também não. Por isso, o “Bom dia pequenas”, que sempre escutava deu lugar ao: Alice, cadê a Isabel?

Incrivelmente eu abri os olhos mais cedo e até arregalei-os para ter certeza de que Isabel não estava no quarto. Papai foi ao banheiro, à cozinha e nada. Mamãe que só acordava na hora do café, levantou ao perceber a aflição que nos tomou conta.

Como Isabel conseguiu sair de casa sem ninguém perceber? Por que não avisou ninguém?
E eu até dei boa noite pra ela antes de dormir, logo quando a novela terminou.

Papai disse que ela fugiu. Mamãe acha que ela saiu mais cedo. E eu, só queria dormir até mais tarde naquele dia.



CATEGORIA: Imaginação

20110923

CENA 34: Mary e Erick, na festa.

INT. SALÃO - NOITE  

- Mary, tenha consciência de que você não tem o porte de uma... Miss Universo.
- Sei disso. Não chego aos pés de ser uma mulher interessante aos homens.
- Não acho.
- Olhe pra mim, Erick. Desajeitada em cima desses saltos. Nem meu andar é gracioso. Nem perfume eu consigo usar.
- Sabe de uma coisa?
- O que?
- Se um grupo de mulheres chegasse neste salão. Você não seria a primeira a ser notada. Mas, ao se apresentar, e começar a falar suas opiniões, de tudo o que sabe, do que gosta. E explicar as coisas com um jeito doce e, ao mesmo tempo, seguro. Isso sim é encantador! De um jeito que seduz. Daí, bastava um sorriso, desses que só você sabe estampar, pra fazer qualquer pessoa parar para lhe olhar. É simples Mary. Não precisa tentar ser o que não é. Seja você. E saiba, há quem lhe goste assim.
- Isso é uma tentativa de me alegrar? Como um prêmio de consolação?
- Não. Não Mary. Você deveria ser menos arisca. E às vezes, mais esperta. Porque não entende o que está acontecendo aqui.
- E o que está acontecendo aqui?
- Eu não posso te explicar. Você terá de perceber sozinha. Pois, só assim saberá como agir. E resolverá tudo isso de uma vez.
- Resolver o que?
- Sua vida. Minha vida. Nossas...
- Espera! Não existe nossas.

(...)
- Tem razão. Nunca existiu. Acho que eu vou embora. Você vai ficar bem?
- Não estou bem desde que cheguei. Vou com você. Me leva pra casa?
- Não Mary. Hoje não.
- Mas...
- Hoje eu não consigo. Boa noite.

CATEGORIA: Imaginação

20110921

Antes do meio-dia - PARTE II

Consciente mesmo sem explicação. Rápido por causa da vontade. Porém, um ritmo certo para todos os movimentos. Daria até para escrever um livro sobre os detalhes, os olhares e as dúvidas de uma manhã incomum, mas boa. Onde o vazio foi preenchido pela presença que antes só ficava no pensamento.

Foi real. Era a única certeza que Andréa tinha naquele momento. Ainda na cama, parecia não acreditar. Mas sabia: foi real. E não tinha mais como consertar.

Levantou, vestiu-se e quis sair dali. Da janela podia ver o movimento nas calçadas, o trânsito e o sol. Era dia. “Meio-dia”, disse ao olhar o celular. Havia duas chamadas perdidas. Não ousou ver de quem era pois sabia a resposta. Não teve coragem.

Talvez por menos de um minuto, tentou se jogar da janela. Pôs os braços para fora, sentiu a pele arder por causa do calor e sorriu. “Idiota”, xingou a si mesma.

Ligou o rádio no volume mais alto e foi tomar banho. Debaixo do chuveiro ficou cantando aos berros para que a mente não lembrasse do que acabara de acontecer.

Depois de trocar as colchas da cama o telefone tocou novamente mas ela não atendeu. Não quis. Preferiu se permitir lembrar e jurou: “é a primeira e a última vez”.

E se um dia alguém esquecer, o outro lembra. E se nunca for esquecido. Pode ser um problema.

CATEGORIA: Imaginação

20110912

Por chocolate...

Uma noite de verão, um doce e um sorriso: ainda me permitia saborear um bom chocolate após o almoço. Diariamente, sem culpa, assim o fazia. Como um ritual.
Como se fosse vital sentir o sabor de cacau e leite derretendo dentro da boca, nada era mais prazeroso antes de enfrentar as missões impossíveis da rotina. Naquele dia, levei um a mais. Guardei a delícia para depois. Articulei quando, onde e como curtir aquele gosto dos deuses. Deixei para a noite.

Depois das sete, um calor típico que me tirava as forças foi cessado. O ar fresco me deixou leve. Borboletas saiam da minha barriga, como uma ansiedade boa e boba. Poderia ser a vontade de ter o chocolate se desfazendo na língua, mas não.
Foi um breve sorriso que me fez suspirar. Nem calor, nem cansaço, apenas aquele sorriso superou qualquer gosto doce na boca, do que qualquer frescor na quentura da noite.

Desde então, carrego sempre mais um chocolate na bolsa.

CATEGORIA: Verdades Ilusórias

20110830

Brasília: um filme, um cantor, uma jaqueta.

(no avião)

Foi no avião que Bernardo viu Lígia pela primeira vez. Lígia já tinha visto Bernardo na sala de embarque, mas como havia esquecido sua jaqueta em um banco do lado de fora, teve que sair correndo para buscar. Por isso, Bernardo não a viu antes.
Sem conseguir recuperar a jaqueta, foi embarcando pensando no frio que iria sentir durante o vôo e na escala em São Paulo. Vestindo jeans e camiseta vermelha, Lígia se arrependeu, durante os cinco passos que deu no corredor do avião, de ter cortado o cabelo há dois dias. Pelo menos com o cabelo comprido ela podia cobrir as costas que sempre ficavam arrepiadas no frio.
Enquanto Lígia pensava no frio, na jaqueta, no cabelo e procurava sua poltrona, Bernardo já estava sentado. Bem acomodado, ouvia música em seu mp3 e batucava os dedos no ritmo de “Lucy in the Sky of Diamonds”, dos Beatles. Olhando para o chão e curtindo a música ele viu um tênis branco, o mesmo modelo que usava, se aproximar. Contou cinco passos. O par de tênis parou junto aos seus.

- Oi, dá licença?
(A girl with kaleidoscope eyes)

Bernardo ouviu exatamente esse verso olhando para os movimentos dos lábios de Lígia que lhe pedia licença para passar. Antes do refrão, ele olhou os olhos dela. Azuis, verdes, cinzas. Não soube definir a cor exata.
Ainda pensando no frio, Lígia, que queria logo sentar para se abrigar na poltrona fez gestos apontando para os ouvidos para que Bernardo tirasse os fones para ouvi-la.
Mesmo sem querer interromper a música, Bernardo optou por tirar os fones para ouvir Lígia. E ele os tirou devagar formando no mesmo ritmo um sorriso meio sedutor, meio admirado.
Nesse momento, Lígia se irritava com a lentidão que a fazia sentir mais frio. Mas ela também deixou formar um sorriso meio irônico, meio encantado pelo jeito de Bernardo.
Na verdade, várias garotas que estavam no avião admiraram Bernardo. Moreno, um rosto bonito de traços perfeitos, altura certa para qualquer homem. Vestia roupas bonitas e um tênis branco. Como o de Lígia.
Sorrindo e falando ao mesmo tempo, Lígia pediu licença novamente. Bernardo se desculpou e levantou para abrir caminho até a poltrona ao lado.
Enfim, sentou e aqueceu as costas na poltrona. Nesse momento ela pensou no frio, na jaqueta, no cabelo e no rapaz ao lado – Bernardo, que apontou para os pés e disse:

- Gostei do tênis.
- Percebi. – Falou Lígia balançando a cabeça.
- Frio?
-Muito. Eu esqueci minha jaqueta.
- Vai pra São Paulo?
- Brasília.

Durante a conversa Bernardo não desviou o olhar do rosto de Lígia que respondia rápido, com medo de explicar muito e acabar falando bobagens já que sua atenção era desviada consecutivamente para o olhar, a boca e a camisa de Bernardo.

- Usa a minha. – Bernardo estendeu sua jaqueta preta de naylon para Lígia.
- Não, Imagina – Lígia pensou no frio, na sua jaqueta, na jaqueta de Bernardo e no seu cabelo.
- Pode usar. Está limpinha.
Lígia com um olhar hesitante pegou a jaqueta, sorriu e deixou escapar:
- Ai, que situação.
- Culpa sua.
- Do que?
- Da situação. – Respondeu Bernardo mostrando os dentes e molhando os lábios.

Lígia vestiu a jaqueta. Um pouco grande, mas serviu para aquecê-la. Depois de vestir, ela pensou no frio, na jaqueta de Bernardo, no seu cabelo e na boca de Bernardo.

CATEGORIA: Imaginação

20110829

Antes do meio-dia PARTE I

Como acabar com aquilo que nem começou?

Havia muitas dúvidas na cabeça dele. Mas queria se arriscar. Queria sentir o peso de errar e sofrer. A ponto de ser tão egoísta por guardar o prazer para sí. Um prazer efêmero, ilusório, inconsistente. Até sem motivo pois, já tinha com quem dividir qualquer tipo mais genuíno de prazer ou qualquer outro sentimento bom.
Ele então, se mostrou egoísta. Mais "ego" do "ísta" e jogou a rede.
De cara ganhou a pescaria. Desenvolvia lentamente até o peixe vir à superfície, até não poder respirar. Isso o dava prazer.
Quando chegou perto de ter o que queria... desistiu. Com um aperto no ego.
De resto, pensou melhor mesmo não querendo pensar. Deixou sua caça ir e até se despediu sendo mais "ísta" do que "ego". Admitiu o erro. Nem tentou mais. Ficou apenas imaginando como seria se fosse ao invés de não ser.

CATEGORIA: Mentiras Sinceras. 

20110828

Alice aos dezoito

A princesa que vivia no castelo cruzou os portões e chegou ao pântano.
Lá, não há sapo algum para se transformar em príncipe.
Ela viu abutres, pisou na lama, sentiu frio e medo do escuro.
Às vezes, se anima com a luz do sol.
Sente saudade dos jardins, do chá, do perfume da roupa limpa e até dos bailes.
Mas a vida é outra.
Fora do castelo não há proteção. Não há realeza.
Uma princesa no pântano, tentando achar o caminho de volta.

Pensou que a liberdade seria mais feliz que a obediência. 


CATEGORIA: Rotina.

Nem pudor nem compromisso

Vicente não era do tipo que se apegava a sentimentos perigosos. Gostava, curtia, e depois de conseguir o que queria, desencanava. Não tinha um porte físico perfeito nem era o mais inteligente dos mortais. Apesar disso, era um cara interessante. Sabia contar boas histórias e escolhia as roupas certas para despertar curiosidade entre as mulheres. 

Nunca namorou sério. Compromissos estavam longe de seus planos.
Também não tinha vergonha. Se queria, falava e corria atrás. "Não sou de dificultar as coisas", me disse uma vez. 

Vicente não tinha pudor em revelar as coisas que sentia. Até se apaixonar. Um dos sentimentos mais perigosos que nunca havia experimentado. Com a paixão, veio o ciúme, o medo. Desistiu disso. 

Não conseguiu esquecê-la mas ainda vive da mesma maneira.

CATEGORIA: Rotina