20110927

Alice, cadê a Isabel?

E um dia papai disse: ela fugiu!

Parecia um dia normal. Daqueles de acordar querendo ficar mais tempo na cama, com os pés cobertos no lençol. De escovar os dentes com os olhos quase fechados e na hora de vestir o uniforme perceber que mamãe não tinha passado na noite anterior.

Antes de levantar até pensei se ainda tinha presunto para preparar meu misto quente. Mas foi só papai acender a luz do quarto para nos despertar e nos tirar do mundo maravilhoso dos sonhos (onde não havia colégio nem ônibus lotado e nem mochilas pesadas) que o dia se transformou em um dia incomum. E ainda eram seis horas.

Isabel não estava na cama. O tênis também não. Por isso, o “Bom dia pequenas”, que sempre escutava deu lugar ao: Alice, cadê a Isabel?

Incrivelmente eu abri os olhos mais cedo e até arregalei-os para ter certeza de que Isabel não estava no quarto. Papai foi ao banheiro, à cozinha e nada. Mamãe que só acordava na hora do café, levantou ao perceber a aflição que nos tomou conta.

Como Isabel conseguiu sair de casa sem ninguém perceber? Por que não avisou ninguém?
E eu até dei boa noite pra ela antes de dormir, logo quando a novela terminou.

Papai disse que ela fugiu. Mamãe acha que ela saiu mais cedo. E eu, só queria dormir até mais tarde naquele dia.



CATEGORIA: Imaginação

20110923

CENA 34: Mary e Erick, na festa.

INT. SALÃO - NOITE  

- Mary, tenha consciência de que você não tem o porte de uma... Miss Universo.
- Sei disso. Não chego aos pés de ser uma mulher interessante aos homens.
- Não acho.
- Olhe pra mim, Erick. Desajeitada em cima desses saltos. Nem meu andar é gracioso. Nem perfume eu consigo usar.
- Sabe de uma coisa?
- O que?
- Se um grupo de mulheres chegasse neste salão. Você não seria a primeira a ser notada. Mas, ao se apresentar, e começar a falar suas opiniões, de tudo o que sabe, do que gosta. E explicar as coisas com um jeito doce e, ao mesmo tempo, seguro. Isso sim é encantador! De um jeito que seduz. Daí, bastava um sorriso, desses que só você sabe estampar, pra fazer qualquer pessoa parar para lhe olhar. É simples Mary. Não precisa tentar ser o que não é. Seja você. E saiba, há quem lhe goste assim.
- Isso é uma tentativa de me alegrar? Como um prêmio de consolação?
- Não. Não Mary. Você deveria ser menos arisca. E às vezes, mais esperta. Porque não entende o que está acontecendo aqui.
- E o que está acontecendo aqui?
- Eu não posso te explicar. Você terá de perceber sozinha. Pois, só assim saberá como agir. E resolverá tudo isso de uma vez.
- Resolver o que?
- Sua vida. Minha vida. Nossas...
- Espera! Não existe nossas.

(...)
- Tem razão. Nunca existiu. Acho que eu vou embora. Você vai ficar bem?
- Não estou bem desde que cheguei. Vou com você. Me leva pra casa?
- Não Mary. Hoje não.
- Mas...
- Hoje eu não consigo. Boa noite.

CATEGORIA: Imaginação

20110921

Antes do meio-dia - PARTE II

Consciente mesmo sem explicação. Rápido por causa da vontade. Porém, um ritmo certo para todos os movimentos. Daria até para escrever um livro sobre os detalhes, os olhares e as dúvidas de uma manhã incomum, mas boa. Onde o vazio foi preenchido pela presença que antes só ficava no pensamento.

Foi real. Era a única certeza que Andréa tinha naquele momento. Ainda na cama, parecia não acreditar. Mas sabia: foi real. E não tinha mais como consertar.

Levantou, vestiu-se e quis sair dali. Da janela podia ver o movimento nas calçadas, o trânsito e o sol. Era dia. “Meio-dia”, disse ao olhar o celular. Havia duas chamadas perdidas. Não ousou ver de quem era pois sabia a resposta. Não teve coragem.

Talvez por menos de um minuto, tentou se jogar da janela. Pôs os braços para fora, sentiu a pele arder por causa do calor e sorriu. “Idiota”, xingou a si mesma.

Ligou o rádio no volume mais alto e foi tomar banho. Debaixo do chuveiro ficou cantando aos berros para que a mente não lembrasse do que acabara de acontecer.

Depois de trocar as colchas da cama o telefone tocou novamente mas ela não atendeu. Não quis. Preferiu se permitir lembrar e jurou: “é a primeira e a última vez”.

E se um dia alguém esquecer, o outro lembra. E se nunca for esquecido. Pode ser um problema.

CATEGORIA: Imaginação

20110912

Por chocolate...

Uma noite de verão, um doce e um sorriso: ainda me permitia saborear um bom chocolate após o almoço. Diariamente, sem culpa, assim o fazia. Como um ritual.
Como se fosse vital sentir o sabor de cacau e leite derretendo dentro da boca, nada era mais prazeroso antes de enfrentar as missões impossíveis da rotina. Naquele dia, levei um a mais. Guardei a delícia para depois. Articulei quando, onde e como curtir aquele gosto dos deuses. Deixei para a noite.

Depois das sete, um calor típico que me tirava as forças foi cessado. O ar fresco me deixou leve. Borboletas saiam da minha barriga, como uma ansiedade boa e boba. Poderia ser a vontade de ter o chocolate se desfazendo na língua, mas não.
Foi um breve sorriso que me fez suspirar. Nem calor, nem cansaço, apenas aquele sorriso superou qualquer gosto doce na boca, do que qualquer frescor na quentura da noite.

Desde então, carrego sempre mais um chocolate na bolsa.

CATEGORIA: Verdades Ilusórias

20110830

Brasília: um filme, um cantor, uma jaqueta.

(no avião)

Foi no avião que Bernardo viu Lígia pela primeira vez. Lígia já tinha visto Bernardo na sala de embarque, mas como havia esquecido sua jaqueta em um banco do lado de fora, teve que sair correndo para buscar. Por isso, Bernardo não a viu antes.
Sem conseguir recuperar a jaqueta, foi embarcando pensando no frio que iria sentir durante o vôo e na escala em São Paulo. Vestindo jeans e camiseta vermelha, Lígia se arrependeu, durante os cinco passos que deu no corredor do avião, de ter cortado o cabelo há dois dias. Pelo menos com o cabelo comprido ela podia cobrir as costas que sempre ficavam arrepiadas no frio.
Enquanto Lígia pensava no frio, na jaqueta, no cabelo e procurava sua poltrona, Bernardo já estava sentado. Bem acomodado, ouvia música em seu mp3 e batucava os dedos no ritmo de “Lucy in the Sky of Diamonds”, dos Beatles. Olhando para o chão e curtindo a música ele viu um tênis branco, o mesmo modelo que usava, se aproximar. Contou cinco passos. O par de tênis parou junto aos seus.

- Oi, dá licença?
(A girl with kaleidoscope eyes)

Bernardo ouviu exatamente esse verso olhando para os movimentos dos lábios de Lígia que lhe pedia licença para passar. Antes do refrão, ele olhou os olhos dela. Azuis, verdes, cinzas. Não soube definir a cor exata.
Ainda pensando no frio, Lígia, que queria logo sentar para se abrigar na poltrona fez gestos apontando para os ouvidos para que Bernardo tirasse os fones para ouvi-la.
Mesmo sem querer interromper a música, Bernardo optou por tirar os fones para ouvir Lígia. E ele os tirou devagar formando no mesmo ritmo um sorriso meio sedutor, meio admirado.
Nesse momento, Lígia se irritava com a lentidão que a fazia sentir mais frio. Mas ela também deixou formar um sorriso meio irônico, meio encantado pelo jeito de Bernardo.
Na verdade, várias garotas que estavam no avião admiraram Bernardo. Moreno, um rosto bonito de traços perfeitos, altura certa para qualquer homem. Vestia roupas bonitas e um tênis branco. Como o de Lígia.
Sorrindo e falando ao mesmo tempo, Lígia pediu licença novamente. Bernardo se desculpou e levantou para abrir caminho até a poltrona ao lado.
Enfim, sentou e aqueceu as costas na poltrona. Nesse momento ela pensou no frio, na jaqueta, no cabelo e no rapaz ao lado – Bernardo, que apontou para os pés e disse:

- Gostei do tênis.
- Percebi. – Falou Lígia balançando a cabeça.
- Frio?
-Muito. Eu esqueci minha jaqueta.
- Vai pra São Paulo?
- Brasília.

Durante a conversa Bernardo não desviou o olhar do rosto de Lígia que respondia rápido, com medo de explicar muito e acabar falando bobagens já que sua atenção era desviada consecutivamente para o olhar, a boca e a camisa de Bernardo.

- Usa a minha. – Bernardo estendeu sua jaqueta preta de naylon para Lígia.
- Não, Imagina – Lígia pensou no frio, na sua jaqueta, na jaqueta de Bernardo e no seu cabelo.
- Pode usar. Está limpinha.
Lígia com um olhar hesitante pegou a jaqueta, sorriu e deixou escapar:
- Ai, que situação.
- Culpa sua.
- Do que?
- Da situação. – Respondeu Bernardo mostrando os dentes e molhando os lábios.

Lígia vestiu a jaqueta. Um pouco grande, mas serviu para aquecê-la. Depois de vestir, ela pensou no frio, na jaqueta de Bernardo, no seu cabelo e na boca de Bernardo.

CATEGORIA: Imaginação